Abraji pede ao STF mudanças em tese que responsabiliza imprensa por fala de entrevistado

19/03/2024 04h36 - Atualizado há 1 mês

Veículos podem ser punidos caso existam “indícios concretos” de falsidade de acusação feita em entrevista e se deixarem de “observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos”

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Fabio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) mudanças na tese aprovada pela Corte para que veículos de comunicação possam ser responsabilizados civilmente por declarações feitas por entrevistados em reportagens jornalísticas.

A responsabilização envolve eventuais indenizações por danos morais. A tese foi aprovada por unanimidade no final de novembro de 2023.

Para a Abraji, a tese tem “termos genéricos” e não levou em conta especificidades da atividade jornalística, como o caso de entrevistas ao vivo. O documento, segundo a entidade, também abre margem para um “amplo e perigoso espectro interpretativo”, que ficará à cargo de juízes de instâncias inferiores.

A associação propôs uma nova redação para a tese (leia a íntegra, mais abaixo), em que sugere que fique expressamente retirada da possibilidade de responsabilização os casos de entrevistas e debates ao vivo, “ainda que tenham sido gravados e possam ser posteriormente visualizados”.

A regra

Pela tese aprovada pelo STF, ficou definido que a empresa jornalística poderá ser responsabilizada quando houver publicação de entrevista em que o entrevistado acusar falsamente outra pessoa sobre a prática de um crime se:

- à época da divulgação da entrevista, havia “indícios concretos” da falsidade da imputação;

- o veículo deixou de observar o “dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.

Depois da aprovação da tese, o presidente do STF, Roberto Barroso, deu declarações relativizando o potencial de responsabilização de veículos, usando termos que, contudo, não constam na redação do documento.

A jornalistas no STF, logo depois da análise do caso, disse que a “única coisa que se pune em termos de liberdade de expressão e de imprensa é a veiculação de má-fé, por intencionalidade de prejudicar ou por absurda negligência em apurar a verdade”.

“A única coisa que se pune em termos de liberdade de expressão e de imprensa é a veiculação de má-fé, por intencionalidade de prejudicar ou por absurda negligência em apurar a verdade”, afirmou, na ocasião.

Conforme Barroso, os ministros definiram que a “regra geral” é que o veículo não é responsável pela declaração que for dada por um entrevistado, “a menos que tenha havido uma grosseira negligência” sobre a apuração de um “fato que fosse de conhecimento público”.

“Precedente perigoso”

A Abraji contestou a inclusão de termos considerados pouco claros, o que pode comprometer a segurança jurídica. Citou, por exemplo, a impossibilidade de se depreender o significado de “dever de cuidado” ou o que seriam os “indícios concretos de falsidade”.

Para a associação, a formulação tem conceitos subjetivos que “enseja precedente perigoso, principalmente ante o histórico cerceamento de imprensa no Brasil”.

A Abraji requer que se exija expressamente, para fins de responsabilização, dolo ou “grosseira negligência” do veículo.

Outro ponto questionado é o das entrevistas ao vivo, considerado pela entidade uma omissão dos ministros que pode abrir caminho para se considerar a prática uma “atividade de risco”.

Conforme a associação, já que que não é possível prever o entendimento dos juízes pelo país, “os jornalistas e os veículos de comunicação teriam de assumir que a entrevista ao vivo seria uma atividade de risco”.

“Esta situação, aliás, certamente causaria enorme constrangimento e desconforto entre entrevistado e entrevistador, limitando a dinâmica da conversa e a promoção do debate público”, disse a Abraji.

A entidades ainda cita impactos práticos da tese aprovada pelo STF, como a tendência a veículos deixarem de produzir conteúdo de interesse público, para evitar possíveis condenações, numa ação de autocensura.

Também cita exemplos de publicações “emblemáticas” que não teriam sido publicadas se considerada a redação atual da tese pelo STF:

- a entrevista de Roberto Jefferson à Folha de S. Paulo em 2005, que levou à descoberta do Mensalão;

- a entrevista de Pedro Collor à Revista Veja em 1992, que levou ao impeachment de Fernando Collor.

Teses

A íntegra da tese aprovada pelo STF em 29 de novembro de 2023 é a seguinte:

“1. A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.

2. Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.

A proposta de tese feita pela Abraji é a seguinte:

“1. A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Em casos de entrevistas publicadas por veículos de mídia e com relação ao conteúdo afirmado pelo próprio entrevistado, admite-se análise posterior à publicação para verificar a possibilidade de exercício do direito de resposta nos termos legais e eventual responsabilização civil, proporcional ao dano que tenha sido comprovado, por falsa imputação de crime a terceiro, considerando, em casos de responsabilização do veículo de mídia, de seus representantes e dos jornalistas os termos do item 2 desta tese. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.

2. Os veículos de mídia, seus representantes e os jornalistas não são responsáveis civilmente pelas falas de entrevistado, exceto na hipótese em que este imputa falsa prática de crime a terceiro, quando a empresa de mídia poderá ser responsabilizada civilmente e de forma solidária ao entrevistado se ficar comprovado que, à época da divulgação: (i) o responsável editorial possuía ciência da falsidade comprovada da imputação, optando por publicá-la dolosamente ou, dada a ciência, por grosseira negligência; ou (ii) se tratava de fato notório, amplamente divulgado e derivado de decisão judicial irrecorrível, tendo o veículo incorrido em dolo ou grosseira negligência, dada a notoriedade, na verificação da veracidade do fato; e (iii) não tiver sido dada oportunidade ao acusado de dar a sua versão dos fatos ou a entrevista não tiver sido acompanhada de apuração da falsa imputação de prática de crime;

3. Estão excetuados casos de entrevistas e debates ao vivo, ainda que tenham sido gravados e possam ser posteriormente visualizados.”

Organizações jornalísticas

Em conjunto com a manifestação da Abraji, entidades e organizações jornalísticas enviaram ao Supremo uma nota técnica sobre o tema.

O documento reconhece o que chama de “esforços da Corte” de pacificar internamente as diferentes propostas dos ministros sobre o tema, mas afirma que o resultado teve “efeito talvez não antecipado pelos julgadores”.

“Ao reunir partes de diferentes teses e acolher sugestões trazidas durante a sessão de julgamento, a interpretação da tese acabou dificultada. Há partes que não possuem qualquer relação com o caso discutido e conceitos que não se sabe ao certo como devem ser interpretados”, afirmaram as entidades. “Além disso, o texto final acabou por ampliar as possibilidades de aplicação que podem resultar em interpretações desproporcionalmente restritivas ao exercício da liberdade de imprensa”.

Segundo a nota técnica, a tese aprovada pelo STF criou “riscos de autocensura, de aumento da judicialização em torno da publicação de entrevistas, e de uma aplicação caótica da tese nas instâncias inferiores”.

“Tais riscos, difíceis de serem suportados até mesmo por grandes veículos de comunicação, considerando-se as dificuldades enfrentadas pelo setor, afetará de modo ainda mais drástico veículos locais, de menor porte, os nativos digitais, além de jornalistas e comunicadores que realizam publicações independentes em blogs ou mesmo em seus canais em redes sociais”.

Assinam a nota, além da própria Abraji: Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Instituto Palavra Aberta, Instituto Vladimir Herzog, Repórteres Sem Fronteiras (RSF) e Tornavoz.

Lucas Mendes da CNN