Pai do garantismo penal critica anistia e mostra nova Constituição

10/09/2025 05h02 - Atualizado há 1 dia

Ao Metrópoles, Luigi Ferrajoli elogiou as instituições pelo julgamento de Bolsonaro e criticou a política brasileira de segurança pública

Cb image default

Daniel Ferreira/Metrópoles @danielferreirafoto

Considerado o pai do garantismo penal, o jurista e professor italiano Luigi Ferrajoli desembarcou no Brasil neste mês com uma nova obra em mãos, a Constituição da Terra. Um modelo de carta que deveria, na sua visão, ser adotado mundialmente como instrumento jurídico vinculante. Enquanto ele olha para o futuro, o Brasil tenta virar uma página do seu passado recente com o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) no Supremo Tribunal Federal (STF), o que deve levar à primeira condenação por tentativa de golpe de Estado na história da República.

O professor elogiou o funcionamento da democracia brasileira pelo julgamento. Em entrevista ao Metrópoles, Ferrajoli classificou o processo como “um sinal de grande civilidade e de defesa do Estado de Direito contra a tentativa golpe”. O criador do garantismo também afirmou que a ideia de anistiar condenados por tentativa de golpe não se enquadra nessa teoria jurídica.

Ferrajoli apresentou a Constituição da Terra ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na última sexta-feira (5/9), mesmo dia em que também encontrou a ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. O jurista, na sua defesa da cultura de paz, criticou o modelo de repressão ao crime adotado pelo Brasil, alertando para o alto número de homicídios.

Confira a entrevista:

De onde surge e o que é de fato a Constituição da Terra? Seria a ideia de um Texto constitucional único conforme já tentou se fazer outras vezes e porque você retoma essa ideia agora?

O projeto é fruto de uma teoria geral da democracia, da democracia constitucional, e das garantias necessárias para implementação do garantismo, que eu desenvolvi em muitos volumes, o principal deles é o Principia Iuris, em três volumes de quase três mil páginas e depois em A Construção da Democracia, em A democracia através dos Direitos, no Manifesto pela igualdade, e a origem, o Direito e Razão, livro de muita difusão no Brasil.

O projeto nasce da consciência que o mundo se encontra em frente a catástrofes que se não enfrentadas, podem provocar a destruição da humanidade. O aquecimento global, a transição ecológica ainda não começou, todo ano produzimos mais e mais carbono e existe uma total irresponsabilidade da política dos países. O risco nuclear, o clima belicista, a força dos armamentos e a lógica do inimigo.

O projeto teve o seu nascimento na Itália, mas ele já conta com a adesão de diversos juristas no mundo. Ainda falando dos discursos de garantias do projeto da constituição da Terra, tem-se também a garantia da natureza, subtraindo do mercado a tutela e os bens comuns da natureza. E depois o Direito a Saúde, não é suficiente declarar o direito a saúde precisando de hospitais.

Esta declaração não providencia a construção de hospitais, é necessário um serviço sanitário global, uma instituição global, financiada por um fisco global. Pode parecer uma utopia, mas é a única resposta realistica a um futuro de autodestruição da humanidade.

O que o projeto difere do que temos hoje de mecanismos internacionais, como a Declaração de Direitos Humanos?

A Constituição da Terra nasce da Carta dos Direitos Humanos e da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), estas cartas são o embrião das

constituições no mundo, mas não são uma constituição rígida, vinculante para os Estados, é subordinada a todas as outras fontes, que requerem uma corte constitucional global, sobretudo estas cartas contem princípios, palavras, mas não são capazes de promover as instituição de garantias.

Os princípios da paz, igualdade, direitos humanos, são palavras que requerem uma norma e atuação que introduzam as garantias desses princípios. Pela paz, por exemplo, pode ser a previsão de crime contra a humanidade a produção e comercio de armas de fogo, para a garantia da paz e da segurança individual.

O senhor considera que deveria ser considerado crime contra a humanidade a produção de armas nucleares e qualquer arma de fogo?

Isso, de todas as armas. Na Itália, onde ninguém tem armas são 300 homicídios por ano, no Brasil 50.000.

No quesito de implementação da ideia, o senhor tem procurado chefes de Estado. Eles tem demonstrado abertura? E qual o caminho para a implementação de uma agenda deste tipo?

Estamos começando a encontrar os chefes de Estado, para implementar é preciso difundir esse projeto de baixo, nós estamos traduzindo para todas as línguas, para criar uma opinião pública favorável a paz, a igualdade, a garantia dos Direitos Fundamentais e a segurança da natureza.

O senhor teria que convencer os chefes de Estado a reconhecer essa Constituição. Seria via ONU?

Naturalmente eu não sou otimista, dizemos sempre que é muito improvável, mas não diria que é impossível. Em termos teóricos nós mostramos a possibilidade, não apenas a possibilidade como também a obrigação se levamos a sério a carta da ONU e as tantas cartas de direito e não as consideramos pura retórica e, sobretudo, é necessário se queremos que a humanidade não sucumba ao aquecimento climático que está aumentando, sem interrupções, ano a ano, e como efeito transformando a terra em um lugar inabitável e transformando ambiente num inferno. Sabemos muito bem que a politica vem em direção oposta.

Houve algum tipo de sinalização positiva do presidente Lula para incorporar essa agenda tanto internamente no Brasil, quanto diplomaticamente?

O Brasil desenvolveu majoritariamente uma cultura garantista, então a minha esperança agora é que seja aderido na esfera pública, na esfera política. Na Itália temos convencido algumas força políticas, assim como na Espanha, sabemos que é um processo longo, este é o verdadeiro drama porque não temos muito tempo.

O problema é que os processos constituintes são muito lentos, mas ao mostrar que é possível uma alternativa, a mim parece um dever para um teórico do direito, um teórico da democracia, e ao mesmo tempo um modelo teórico na atuação do direito vigente, da carta dos direitos e da carta da ONU, que está sendo violada repetidamente, porque falta-lhe uma instituição de garantias, falta um serviço sanitário mundial, falta a proibição das armas e devemos mostrar que é possível a atuação destes princípios se tiver a vontade política.

Sua visita coincidiu com um momento histórico do país, o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, primeiro presidente do país julgado por tentativa de golpe de Estado. Já houve outros golpes de Estado no Brasil, a historia do Brasil é recheada de tentativas de golpes de Estado, então o que este julgamento representa para a democracia?

O processo é um sinal de grande civilidade e de defesa do Estado de Direito contra a tentativa golpe, é a primeira vez que temos isso na América Latina e também no mundo e é paradoxal que em um fenômeno análogo [nos Estados Unidos], o assalto ao Capitólio, Trump tenha agraciado a todos que participaram e rechaçou todos aqueles que questionaram a sua tentativa de golpe de Estado, é paradoxal que na democracia mais antiga do mundo se tolere essa tentativa de inversão. Isso confere um maior valor a reação do Brasil, que defende a legalidade, defende a democracia sancionando. É um processo que significa a vitória do Direito sobre a força.

O sr. é visto como o pai do garantismo, mas a gente tem visto no Brasil ultimamente uma discussão sobre anistia que vai num caminho totalmente contrário que isto não garantismo, mas eu queria uma avaliação sua sobre essa possibilidade de anistiar quem supostamente participou dessa tentativa de golpe, das manifestações e desses atentados contra a democracia que aconteceram no Brasil.

Esta é uma avaliação política, eu penso que seja necessário sancionar como a lei determina, como uma reação para para a ilegitimidade desta tentativa de golpe. Na certeza do Direito devemos considerar a anistia e a graça tendencialmente inadmissível, infelizmente em tempos de punitivismo é difícil contrastar, não estou falando obviamente do processo do Bolsonaro. Num Direito Penal Garantista, um direito penal mínimo, as penas são baixas e servem como reação para algo realmente grave, sendo as outras coisas ilícitos administrativos, a anistia não deve existir. Deve se ter cuidado para que o Direito Penal não tenha um caráter de vingança e não reproduza a violência do crime. Isso significa que no ensinamento garantista não deve haver espaço para a anistia.

Conversou com Lula sobre direitos humanos?

Sim, eu dei a ele uma cópia da Constituição da Terra, mas não tratamos especificamente de um tema, apenas de forma geral.

O senhor também esteve também com o Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski. Aqui no Brasil o ministro da Justiça acumula também a Segurança Pública. A segurança publica no Brasil é alvo de constantes denuncias por causa das operações, em ocupações, em razão de mortes violentas causadas pelo Estado. Isso também é abordado na Carta?

Um dos problemas mais graves é a violência, e a resposta deve ser a proibição do comércio de armas, estas são muito mais perigosas do que as drogas. Temos que recordar dos 300 homicídios na Itália, onde ninguém tem arma, e dos 50.000 no Brasil. A proibição das armas é a norma fundamental da constituição da Terra, se queremos um mundo pacificado é necessário realizar esse feito senão será impossível.

Pela sua visita e pelo que você entende de Brasil, qual o problema mais urgente pra democracia e para a consolidação do Brasil como um país pacífico?

A violência e a desigualdade, a desigualdade é intolerável.

O senhor chega a abordar em algum momento a renda universal?

Sim sim, se introduz uma renda universal, atribuída a todos, também as pessoas ricas, para evitar que tenha um caráter de estigmatização social da pessoa que não trabalha, a sobrevivência deve ser garantida a todos, porque no mundo atual a sobrevivência não é um fenômeno natural, com o problema do desemprego dos jovens, da imigração. Então, a sobrevivência tem que ser garantida a todos e o salário mínimo deve ser o dobro da renda básica, porque o trabalho deve ser fruto de uma escolha e não de uma necessidade de sobrevivência, é necessário uma organização de caráter global que assegure a alimentação a todos, e para isso é necessário um fisco global fortemente progressivo.

Augusto Tenório

METRÓPOLES