Carne cultivada em laboratório cresce, mas enfrenta testes de escala e mercado
Relatório da Market Growth Reports aponta taxa média anual de crescimento de 17,2% ao ano, para US$ 827,93 milhões até 2034
A carne cultivada em laboratório — produzida a partir do cultivo de células animais, sem necessidade de abate — vem avançando globalmente impulsionada por ganhos tecnológicos, investimentos de grandes grupos e avanços regulatórios em mercados-chave.
Ao mesmo tempo, o setor enfrenta desafios relevantes ligados à escala industrial, à aceitação do consumidor e à resistência política em algumas regiões.
Segundo relatório da Market Growth Reports, o mercado global de carne cultivada deve crescer de US$ 198,47 milhões em 2025 para US$ 827,93 milhões até 2034, o que representa uma CAGR (taxa média anual de crescimento) de 17,2%.
Apesar do momento recente de retração nos investimentos, o estudo avalia que a indústria entrou em uma fase de consolidação, na qual empresas mais capitalizadas e tecnologicamente maduras tendem a sobreviver e liderar o crescimento de longo prazo.
Avanços científicos reduzem custos
Um dos principais entraves da carne cultivada — o alto custo de produção — vem sendo atacado por uma combinação de avanços científicos e industriais.
Pesquisadores em Israel desenvolveram recentemente uma técnica que permite que células bovinas se multipliquem indefinidamente sem modificação genética, o que pode reduzir despesas operacionais e facilitar aprovações regulatórias, especialmente em mercados com restrições a organismos geneticamente modificados.
Outro avanço relevante ocorreu na área de insumos. A britânica Multus Biotechnology lançou meios de cultivo celulares de grau alimentício voltados à produção industrial.
Segundo a empresa, o custo do meio de cultivo — hoje responsável por grande parte do preço final da carne cultivada — pode cair para menos de US$ 1 por litro, ante valores que já chegaram a dezenas ou centenas de dólares nos primeiros anos da indústria.
Além disso, o GFI (Good Food Institute), em parceria com a Universidade de Tufts, passou a oferecer linhas celulares bovinas de acesso aberto, permitindo que startups e centros de pesquisa reduzam custos iniciais de desenvolvimento e acelerem o avanço tecnológico.
Esses avanços ajudam a explicar por que, de acordo com a Market Growth Reports, os custos de produção por quilo de carne cultivada caíram até 85% desde 2020, aproximando a tecnologia de uma viabilidade comercial mais ampla.
Escala industrial ainda é o maior desafio
Apesar do progresso, a transição da escala piloto para a produção industrial segue sendo o principal gargalo do setor. Para enfrentá-lo, empresas têm buscado parcerias com grupos tradicionais de engenharia, alimentos e proteína animal.
A Believer Meats (antiga Future Meat Technologies), por exemplo, construiu nos Estados Unidos uma unidade industrial avaliada em cerca de US$ 123 milhões, com capacidade projetada de até 12 mil toneladas anuais de frango cultivado.
A empresa afirma que sua tecnologia permite produzir carne cultivada a um custo estimado entre US$ 6 e US$ 7 por libra, valor próximo ao do frango orgânico no mercado norte-americano.
Na Europa, a SuperMeat captou aproximadamente US$ 3,5 milhões para acelerar a entrada de seu frango cultivado no mercado europeu. A empresa afirma ter atingido paridade de custo com o frango convencional em ambientes controlados de produção, embora ainda dependa de aprovação regulatória para vendas em larga escala.
Grandes grupos no setor
O avanço da carne cultivada também tem atraído empresas tradicionais do setor de proteínas. A JBS, uma das maiores produtoras de carne do mundo, fez investimentos de cerca de US$ 100 milhões em tecnologias de carne cultivada, incluindo a aquisição da espanhola BioTech Foods. A companhia planeja iniciar a produção comercial nos próximos anos, inicialmente fora do Brasil.
Outros nomes relevantes do setor incluem Upside Foods, Aleph Farms, BlueNalu, Wildtype e Mission Barns, com projetos focados em frango, carne bovina, peixes, frutos do mar e gordura animal cultivada para uso em alimentos processados.
Aprovações regulatórias
No campo regulatório, Estados Unidos e Singapura seguem na liderança. A Believer Meats recebeu autorização do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA) para produzir e comercializar frango cultivado, tornando-se a primeira empresa estrangeira a obter esse tipo de aprovação no país.
Já a Wildtype obteve aval da FDA para servir salmão cultivado em restaurantes selecionados nos Estados Unidos. Singapura, primeiro país a liberar a venda de carne cultivada, continua aprovando novas empresas e se consolidando como um laboratório global da tecnologia.
Ainda assim, segundo a Market Growth Reports, 24% dos mercados potenciais ainda não contam com caminhos regulatórios claros, o que atrasa a entrada de novos produtos e aumenta o custo de capital para as empresas.
Resistência política e ceticismo do consumidor
Apesar dos avanços, o setor enfrenta oposição crescente em algumas regiões. Estados americanos como Flórida e Texas aprovaram leis que proíbem a venda de carne cultivada, sob o argumento de proteger a pecuária tradicional.
As medidas estão sendo contestadas judicialmente por empresas e entidades do setor, que as veem como barreiras à inovação e à livre concorrência.
Na Europa, o debate ocorre de forma mais cautelosa. Autoridades ainda trabalham na definição de critérios específicos de segurança e rotulagem, enquanto pesquisas indicam que parte dos consumidores permanece cética.
De acordo com a Market Growth Reports, 29% dos consumidores globais ainda demonstram hesitação em relação à carne cultivada, citando dúvidas sobre segurança alimentar, rotulagem e percepção de “naturalidade”.
Por outro lado, aproximadamente 35% dos compradores institucionais de alimentos — como universidades, hospitais e refeitórios corporativos — já relatam interesse em incorporar proteínas cultivadas em seus planos de aquisição.
Segmentos, regiões e canais de consumo
O relatório aponta que o segmento de aves cultivadas lidera o mercado global, seguido por carne bovina, frutos do mar, carne suína e pato, favorecidos por ciclos celulares mais curtos e menores custos produtivos.
Em termos de canais, o mercado se divide principalmente entre:
Consumo doméstico e varejo, que devem movimentar cerca de US$ 110 milhões em 2025, com CAGR de 17,1%;
Serviços de alimentação e restaurantes, com aproximadamente US$ 88,5 milhões e crescimento anual estimado em 17,3%.
A América do Norte concentra cerca de 37% da presença global de empresas e esforços de comercialização, seguida pela Europa e pela Ásia-Pacífico. América Latina e Oriente Médio aparecem como mercados emergentes, ainda dependentes de marcos regulatórios.
Um mercado ainda em construção
Analistas avaliam que a carne cultivada não deve substituir a carne convencional no curto prazo, mas tende a ocupar um espaço crescente no sistema alimentar global à medida que custos caiam, regulações avancem e o consumidor se familiarize com a tecnologia.
O sucesso do setor, conclui a Market Growth Reports, dependerá menos de uma inovação isolada e mais da combinação entre escala industrial, clareza regulatória e confiança do consumidor — fatores que seguem em construção, mas avançam de forma gradual.
Fernanda Pressinott, da CNN Brasil, em São Paulo
